domingo, 31 de março de 2013


"Quando lhe achei, me perdi"

Longe de casa, todos sentem uma carência, uma necessidade de se unir ainda mais como uma família. Apesar dos novos conhecidos, era nos velhos amigos que encontrávamos paz. Não foi diferente conosco, que já encontrávamos entre nós, a paz como um oásis em meio às loucuras do nosso dia a dia...

Eu conversava com esses novos amigos em meio à arquitetura peculiar do lugar. Era entardecer, estávamos todos cansados, mas você, que passava, me alertou de um novo acontecimento, que deveríamos estar presentes. "Vamos?", você me puxou pela mão.

No caminho, nos abraçamos amigavelmente e passamos por uma espécie de bar, você mencionou que ia comprar uma cerveja. Eu falei prá não fazer isso. Você fez aquele seu bico, e com cara de menino arrependido, repensou:"É, né?... Afinal eu ia comprar de olho grande mesmo...". Encostei a cabeça no seu ombro, concordando.

Seguimos caminhando e seus amigos nos pararam para perguntar algo. Eu, distraída, me surpreendi quando você segurou minha mão e entrelaçou seus dedos aos meus. Os olhares se tocaram e nos abraçamos intensamente, sorvendo o cheiro um do outro. Tentei lembrá-lo do nosso acordo e não deixar que nada acontecesse, mas em dado momento, nenhum de nós tinha as rédeas da situação. Agora que o pátio estava deserto, senti sua língua molhar meu pescoço com a força de quem quer alcançar a alma. Tentei dizer não, mas já estava entregue: eu delirava enquanto sentia seus beijos da boca até o colo. Uma de suas mãos invadiu mistérios da minha anatomia, o que fez meu corpo começar a tremer, descontrolado. Ao notar minha vertigem, me puxou para um lugar mais reservado. O sol já estava se pondo, e só conseguíamos enxergar a silhueta um do outro, mas não acendemos a luz - o tato era suficiente. Voltamos a nos beijar, e o frenesi tomou conta novamente. Rapidamente despimos um ao outro e tudo o que você fazia era de um jeito tão inédito que assim que o senti dentro de mim, abafei um grito; logo chegávamos ao êxtase.

Nos abraçamos exaustos com a intensidade do ocorrido, desejando que ninguém interrompesse aquele momento. Você me sentiu apreensiva, mexeu no meu cabelo como só você sabe. Entre carinhos, perguntou o que eu tinha.

Isso não devia ter acontecido... - suspirei.

Você segurou meu queixo, com o olhar de quem queria começar tudo de novo, me calou com um beijo terno. De um dos meus olhos, uma lágrima escapou. Nem eu entendi o que estava acontecendo, mas você parecia compreender... Num gesto carinhoso, secou-me o rosto úmido e me beijou novamente, mas ouvimos outras pessoas se aproximando. Fingimos então que dormíamos, abraçados.

Afinal, pressa prá quê se teríamos ainda mais uns dias só prá nós... Só pra nos permitirmos...
Esse era o novo acordo.



‎"Já tinham vivido o cio das feras. Mas as mãos insistiam em não se desfazer das formas e dos limites alcançados e nunca repetidos. Sabia que não deveria, mas chamavam-se como quem soletra a primeira sílaba." (Cesar Insensato)

Elton John - The One


Como realinhar as órbitas dos planetas?

É na rede que me perco. Clico em um link, que me leva a outro, e a outro... Daí dou de cara com verdades que eu nem buscava, mesmo já desconfiando. O problema é que eu nem sei porque essas verdades caem no meu colo, porque eu nunca sei o que fazer com elas...

Não posso ser a dona da verdade... Nem ser o anjo revelador, ou ainda aquele que salva... Tenho que me conter reconhecendo a individualidade de cada um. Por mais que eu ame - e justamente por isso - reconheci que tenho que me reservar à espera.

Me reservei então a orar. Deitei meu corpo e elevei minha mente a pedir a todos os anjos, santos e orixás que te protejam. Arrepios me percorriam como se eu fosse levitar. Sim, todos estavam à minha volta a ouvir, eu já não tinha dúvidas. Assim como a dúvida deixou de viver em mim quando comecei a ouvir os teus protetores... Quando comecei a acreditar que sim, eles queriam falar comigo, quando comecei a obedecê-los em seus pedidos. Nessa madrugada fria, outra dúvida me abandonou: agora eu entendia porque os meus protetores tanto insistiam em falar comigo sobre você. Todos, no fundo, sabiam da maldade no coração de quem diz te amar... E talvez esperassem algo de mim.

Mas... E se eu estivesse imaginando tudo? Montando o quebra-cabeça com as peças certas mas formando a imagem errada? E se minha fértil mente só estiver seguindo meu coração ressentido???

E nessa minha vida, cheia de sincronias que se respondem, onde videoclipes se fazem para que fantasmas assistam, mais um se fez: em algum lugar no meio da madrugada, no alto de suas 3 horas, uma música veio da rua. Parecia vir de longe, como se somente eu estivesse ouvindo. Como se somente eu entendesse a mensagem:


É essa minha missão então??
Não sei bem o quê, nem como fazer, mas a recebo de braços abertos...

Ògunhiê! Epahey! Atótó!
Shalom!

“Eu sou tua maldição. Teu pirão primeiro. Tua salvação. O sal e o vinho de tua carne e suor. Tua fuga e abrigo. Teu parto, quem te cria e inventa. Tua indecência. E milagre. Tua inocência e delírio. Tatuagem feita de memórias. Tua carta de alforria.” (César Insensato)

Poema Bipolar

(Autoria desconhecida)
"Um poema transtornado
Afetivamente bipolar
Às vezes maníaco,
Outras deprimido
Mas poema...
Seria eu um santo?
Há um halo sobre minha cabeça...
Haloperidol. Ou estaria psicótico?
E cá estou, meio ácido,
perdido na minha agressividade...Valpróico.
Prosaico...
Perdendo e ganhando a cada dia,
Fluoxetina. A vida flui,
Flui o que se tinha, flui o que se perdeu...
Lítio. Li... Leio, ainda. Li, em algum lugar,
Que Freud teria dito que no futuro
A química resolveria tudo...
E em outro lugar, não lembro,
Ser tudo placebo, e a crença a cura...
Se "o poeta é um fingidor
Que finge não ser sua
A dor que deveras sente" (seria isso?)
Quisera eu, demente, fingir não ser tudo verdade...
Mas se confessei os nomes, os crimes,
Ainda não cheguei na dose certa
Onde a mente se equilibra
E a incógnita que somos desperta...
(Estou enlouquecendo à velocidade do pensamento...)"

Eu não pertenço a você


Eu não pertenço a você

Pára! Essa coisa tá fugindo do controle. Ou tu paras, ou tu te entregas.

Não há como cobrar de mim comportamento que não podes dar. Escolheste tu assim. E não há nenhum tipo de controle que tu possas exercer sobre mim. Não há nada na minha vida que tu tenhas direito de bisbilhotar, não tem ninguém nesse mundo que tu tenhas direito de ter ciúmes. Eu toco a minha vida como eu bem entender, tua invasão de privacidade não vai me tolher. Aceite. Aceite isso ou mude. Dá-me também a exclusividade que de mim tu cobras, ou sofra em silêncio o corroer dos ciúmes dentro do peito.

Seria tão simples... Bastava apenas um gesto, uma atitude, uma palavra. Mas tu preferes que todos os envolvidos sofram... Quem sou eu prá salvar alguém? No entanto sou mais que suficiente prá salvar a mim mesma dessa situação rocambolesca. To cansada disso, de ter medo de sentir. É sempre tanta alegria, depois tanta dor... Quero sumir! Deixa-me aqui, sozinha e não vasculhes minhas coisas. Solta-me de vez ao mundo ou agarra-me firme, como nos passos de dança. Mas não me mande ir, não diga que não te importas, porque enquanto eu acreditar e me for, tu não vais poder cobrar nada de mim.

Sou tua enquanto fores meu. Se te negas, também me negarei à tua invasão.
Então, pára! Melhor parar por aí....

Shalom!


Sentimental


Sentimental

É no sussurro das palavras confessadas que revelas a mim, na intimidade dos nossos contatos, o que é inconfessável pela tua boca. Há sempre uma certa solenidade nas formas em que expressas teu afeto quando estamos sós, como se houvesse um conflito entre a liberdade da nossa privacidade e o fantasma da culpa. Ora, mas haveria alguém de ter culpa de amar? Tens culpa dos sonhos que tens comigo? Tenho culpa dos sorrisos que deixas escapar quando nossos olhares se encontram? Temos culpa de ouvirmos os segredos do Paraíso num simples abraço? Quando, enfim, entenderás que pessoas se encontram na vida sem aviso prévio e simplesmente se apaixonam?

Antes pudesse tudo ser calculado... Mas os anjos têm calendários diferentes dos nossos. Eu não esperava reconhecer um pedaço de mim em ti quando meus olhos te tocaram pela primeira vez. Eu não esperava que nossas bocas se comunicassem tão bem, tanto fisicamente quanto no abstrato das palavras. Esperavas tu, encontrar a "mulher de verdade" com quem partilhas cenas de jardim de infância? Esperavas alguém que te lesse ou que te inspirasse cenas de ciúme tão patéticas? Quem espera por essas coisas? Quem as programa? Quem adivinha as vontades do Divino?...

E sussurras assim, quando eu menos espero, pequenas doçuras diárias, pequenas preocupações, beijos mandados pelo ar, desejos de boa noite. Mesmo quando eu pareço alterada, sussurras o cuidado que necessito. E mesmo nas nossas reconciliações, sussurras a curiosidade de quem só quer matar a saudade...

Perdão pela minha indiferença. Perdão pelo meu excesso de sensibilidade. É que às vezes esse amor é tão simples e enormemente insuportável para um humilde coração que simplesmente não esperava tanto... Tanto que às vezes eu desejava que fosse ficcional.

Perdoa-te a ti mesmo, também. És, simplesmente, humano. Não tens direito de magoar a ti mesmo.

O que é o Amor?


O que é o Amor?

Você acredita em D'us?

Eu sempre acreditei. Ninguém em ensinou a acreditar, eu simplesmente O sentia. E com o tempo, fui ouvindo dizer que D'us é Amor. Dizem que está lá, na bíblia. Na verdade, eu mesma vi na época em que fiz catecismo (quem diria eu, umbandista ferrenha, já me embrenhei nos catolicismos da vida).

D'us é Amor e está em tudo. Assim me ensinaram, mas assim acredito também. Tive, em 2011, aquele sonho em que eu via D'us, pude sentir uma onda de Amor se espalhando por toda a Terra. E não era só Amor por mim. Era por toda e qualquer criatura, toda e qualquer geografia. Amor por uma pedra, consegue imaginar? Pois eu não conseguia imaginar, até o dia em que VI. E não era simplesmente amor, era Amor com A maiúsculo, um amor intenso e cheio de paz.

Andei com as energias em baixa. Confesso que ainda não estou "curada", mas estou muito melhor. O remédio? Amor. Enxerguei a D'us em cada pequena coisa, em cada palavra amiga de gente que eu amo, em cada olhar, em cada elogio, em cada abraço. Nos soninhos com minhas crias. Na amiga louca que me pagou um táxi só prá me ouvir. Nas mãos espalmada na janela. Nas ligações divertidas, daquelas em que você pode sentir a pessoa sorrindo do outro lado. Em quem provoca risos na minha filha. Houve, essa semana, até Amor em saber que eu provocava Amor também. D'us Estava ali, comigo, enquanto eu me escondia debaixo da marquise prá não pegar chuva. D'us estava na respiração, na transpiração, na piração. No suspiro dentro do ônibus, na agonia de fora dele. D'us Estava ali, na agitação ao chegar em casa, na repetição de um vocabulário particular. D'us Esteve aqui, o tempo todo, do meu lado, e eu finalmente pude enxergar essa semana.

Hoje eu só tenho a agradecer. Porque senti Amor em cada pequeno momento, de dentro prá fora, de fora prá dentro. Se estou curada?? Não sei, ainda não sei... Mas mudei minha perspectiva. Minha fé está mais forte. Minha fé na vida, minha fé no Amor - sim, ele existe!!

E assim, la nave va...

Shalom!


quarta-feira, 27 de março de 2013

A Luz no Mundo

   A  Luz  no  mundo
   A  Luz  no  Mundo

Luz que encandeia a nossa vida;
Vem do sol, das estrelas, dos olhos de Deus;
Teu facho entra pelas fendas, janelas e portas clareando todo ambiente;
Orifício aberto pro mundo, permite por ele a luz penetrar;
Projeta a sombra dos mais altos monumentos junto aos nossos pés;
Acaba com a escuridão da noite refletindo a luz da lua;
Luz um grande enigma, desafio para humanidade, um dia o Einstein a relativizou;
Quem vê a tua chegada, nem sabe a distancia que percorrestes; 
Viajando no vácuo nada comparasse a ti;
O astrônomo a usa para determinar a distância dos corpos celestes;
A terra sem ti seria árida, estéril e sem vida;
Na tua ausência meus olhos cegam;
Tudo que é visto só torna possível porque reflete a tua luz;
A  tua  refração no vidro, lança espectros cintilante em vários tons;
Luz que irradia, ofusca os olhos daqueles que atreve lhe encarar;
A luz é uma forma de onda que vagueia pelo espaço, na busca de astros para iluminar;
Qualquer  porção da matéria que interpõe a luz, terá a tua imagem  projetada ao chão;
Alcança os olhos, toca a retina, projeta a imagem, dá o tom às cores;
Toca o cio da terra, germina as sementes, vaporiza a água nosso manto protetor;
Quem caminha de encontro a luz, não vê a tua própria sombra;
Luz  na escuridão, referencial seguro, quem segue seu rastro, jamais se perde no caminho;
Luz  que rompe com o clarão da aurora deixa o vazio da noite perder-se no raiar do dia;
Luz  que toca o límpido da água deixando o dia, muito mais azul;
Luz  que  ilumina o caminho a seguir que reflete a imagem através do espelho;
Luz parece esta tão distante e ao mesmo tempo aqui, bem perto de nós, a iluminar;
Bota tudo as claras, revela todo seu potencial, toca os vapores da água no ar, antes translucido, agora vesse o arco-íris em tons variados e reluzentes, apontando o caminho da luz. 
Luz  infinita, sem limites, sem fronteiras, onde houver uma abertura penetra clareando, a tua  presença logo é percebida, deixa claro o que antes era escuro;
Luz que esta presente na unção do batismo;
Luz que ascende o conhecimento humano;
Luz que candeia a nossa vida, só pode vir de algum lugar muito especial, dos olhos de Deus.
Luz que esta em todos os lugares, parecendo o olhar de Deus a nos acompanhar.

terça-feira, 19 de março de 2013

Apesar De Você Chico Buarque


Apesar De Você

Chico Buarque

Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai se dar mal
Etc. e tal
La, laiá, la laiá, la laiá

Ernane Gusmão (Uirapuru)


Ernane Gusmão (Uirapuru)

>
Voa,voa,passarinha
vai dizer ao meu amor
que ela ainda vai ser minha
com ternura e com fervor.
pra melhor a conheceres
vou te dar os traços seus
tem os olhos os mais lindos
os mais belos,deu-lhos Deus.
Seu cabelo é aloirado
os seus lábios um primor
sua pele é rosada
ela é bela como a flor.
28.10.2010
Bahia

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (São Fidélis)
ALUCINAÇÃO

Tentei em vão suavizar a vida,
Tornar mais leve o fardo tão pesado,
Fazer da volta o ponto de partida,
Buscar na ida o amor tão cobiçado!
Eu quis fazer da pauta a partitura
De um canto leve, doce e tão suave,
Cantar a vida com toda a ternura,
Voar em sonhos como uma ave!
Eu quis da luz o raio de esperança
Mas, por castigo, só me veio a treva.
Não me atrevo e guardo na lembrança
O que a serpente aprontou pra Eva…
E desse jeito fico aqui quietinho,
No meu cantinho, bem acompanhado,
Pois não será por falta de carinho
Que comerei a fruta do pecado!


Fernando Pessoa (Caravela da Poesia XIII)

Primeiro Fausto
Terceiro Tema
A Falência do Prazer e do Amor

I
Beber a vida num trago, e nesse trago
Todas as sensações que a vida dá
Em todas as suas formas [...]
Dantes eu queria
Embeber-me nas árvores, nas flores,
Sonhar nas rochas, mares, solidões.
Hoje não, fujo dessa idéia louca:
Tudo o que me aproxima do mistério
Confrange-me de horror. Quero hoje apenas
Sensações, muitas, muitas sensações,
De tudo, de todos neste mundo — humanas,
Não outras de delírios panteístas
Mas sim perpétuos choques de prazer
Mudando sempre,
Guardando forte a personalidade
Para sintetizá-las num sentir.
Quero
Afogar em bulício, em luz, em vozes,
— Tumultuárias [cousas] usuais —
o sentimento da desolação
Que me enche e me avassala.
Folgaria
De encher num dia, [...] num trago,
A medida dos vícios, inda mesmo
Que fosse condenado eternamente —
Loucura! — ao tal inferno,
A um inferno real.
II
Alegres camponeses, raparigas alegres e ditosas,
Como me amarga n’alma essa alegria!
Nem em criança, ser predestinado,
Alegre eu era assim; no meu brincar,
Nas minhas ilusões da infância, eu punha
O mal da minha predestinação.
Acabemos com esta vida assim!
Acabemos! o modo pouco importa!
Sofrer mais já não posso. Pois verei —
Eu, Fausto — aqueles que não sentem bem
Toda a extensão da felicidade,
Gozá-la?
Ferve a revolta em mim
Contra a causa da vida que me fez
Qual sou. E morrerei e deixarei
Neste inundo isto apenas: uma vida
Só prazer e só gozo, só amor,
Só inconsciência em estéril pensamento
E desprezo [...]
Mas eu como entrarei naquela vida?
Eu não nasci para ela.
III
Melodia vaga
Para ti se eleva
E, chorando, leva
O teu coração,
Já de dor exausto,
E sonhando o afaga.
Os teus olhos, Fausto,
Não mais chorarão.
IV
Já não tenho alma. Dei-a à luz e ao ruído,
Só sinto um vácuo imenso onde alma tive…
Sou qualquer cousa de exterior apenas,
Consciente apenas de já nada ser…
Pertenço à estúrdia e à crápula da noite
Sou só delas, encontro-me disperso
Por cada grito bêbedo, por cada
Tom da luz no amplo bojo das botelhas.
Participo da névoa luminosa
Da orgia e da mentira do prazer.
E uma febre e um vácuo que há em mim
Confessa-me já morto… Palpo, em torno
Da minha alma, os fragmentos do meu ser
Com o hábito imortal de perscrutar-me.
V
Perdido
No labirinto de mim mesmo, já
Não sei qual o caminho que me leva
Dele à realidade humana e clara
Cheia de luz [...] alegremente
Mas com profunda pesadez em mim
Esta alegria, esta felicidade,
Que odeio e que me fere [...]
Sinto como um insulto esta alegria
— Toda a alegria. Quase que sinto
Que rir, é rir — não de mim, mas, talvez,
Do meu ser.
VI
Toda a alegria me gela, me faz ódio.
Toda a tristeza alheia me aborrece,
Absorto eu na minha, maior muito Que outras
[...]
Sinto em mim que a minha alma não tolera
Que seja alguém do que ela mais feliz;
O riso insulta-me, por existir;
Que eu sinto que não quero que alguém ria
Enquanto eu não puder. Se acaso tento
Sentir, querer, só quero incoerências
De indefinida aspiração imensa,
Que mesmo no seu sonho é desmedida …
VII
Tua inconsciência alegre é uma ofensa
Para mim. O seu riso esbofeteia-me!
Tua alegria cospe-me na cara!
Oh, com que ódio carnal e espiritual
Escarro sobre o que na alma humana
Fria festas e danças e cantigas…
Com que alegria minha, cairia
Um raio entre eles! Com que pronto
Criaria torturas para eles
Só por rirem a vida em minha cara
E atirarem à minha face pálida
O seu gozo em viver, a poeira — que arda
Em meus olhos — dos seus momentos ocos
De infância adulta e tudo na alegria!
Ó ódio, alegra-me tu sequer!
Faze-me ver a Morte. roendo a todos,
Põe-me ria vista os vermes trabalhando
Aqueles corpos! [...]
VIII
Triste horror d’alma, não evoco já
Com grata saudade, tristemente,
Estas recordações da juventude!
Já não sinto saudades, como há pouco
Inda as sentia. Vai-se-me embotando,
Co’a força de pensar, contínuo e árido,
Toda a verdura e flor do pensamento.
Ao recordar agora, apenas sinto,
Como um cansaço só de ter vivido,
Desconsolado e mudo sentimento
De ter deixado atrás parte de mim,
E saudade de não ter saudade,
Saudades dos tempos em que as tinha.
Se a minha infância agora evoco, vejo
— Estranho! — como uma outra criatura
Que me era amiga, numa vaga
Objetivada subjetividade.
Ora a infância me lembra, como um sonho,
Ora a uma distância sem medida
No tempo, desfazendo-me em espanto;
E a sensação que sinto, ao perceber
Que vou passando, já tem mais de horror
Que tristeza [...]
E nada evoca, a não ser o mistério
Que o tempo tem fechado em sua mão.
Mas a dor é maior!
IX
Ó vestidas razões! Dor que é vergonha
E por vergonha de si-própria cala
A si-mesma o seu nexo! Ó vil e baixa
Porca animalidade do animal,
Que se diz metafísica por medo
A saber-se só baixa …
Ó horror metafísico de ti!
Sentido pelo instinto, não na mente!
Vil metafísica do horror da carne,
Medo do amor…
Entre o teu corpo e o meu desejo dele
‘Stá o abismo de seres consciente;
Pudesse-te eu amar sem que existisses
E possuir-te sem que ali estivesses!
Ah, que hábito recluso de pensar
Tão desterra o animal que ousar não ouso
O que a [besta mais vil] do mundo vil
Obra por maquinismo.
Tanto fechei à chave, aos olhos de outros,
Quanto em mim é instinto, que não sei
Com que gestos ou modos revelar
Um só instinto meu a olhos que olhem …
Deus pessoal, deus gente, dos que crêem,
Existe, para que eu te possa odiar!
Quero alguém a quem possa a maldição
Lançar da minha vida que morri,
E não o vácuo só da noite muda
Que me não ouve.
X
O horror metafísico de Outrem!
O pavor de uma consciência alheia
Como um deus a espreitar-me!
Quem me dera
Ser a única [cousa ou] animal
Para não ter olhares sobre mim!
XI
Um corpo humano!
Às vezes eu, olhando o próprio corpo,
Estremecia de terror ao vê-lo
Assim na realidade, tão carnal.
XII
Sinto horror
À significação que olhos humanos
Contém…
Sinto preciso
Ocultar o meu íntimo aos olhares
E aos perscrutamentos que olhares mostram;
Não quero que ninguém saiba o que sinto,
Além de que o não posso a alguém dizer…
XIII
Com que gesto de alma
Dou o passo de mim até à posse
Do corpo de outros, horrorosamente
Vivo, consciente, atento a mim, tão ele
Como eu sou eu.
XIV
Não me concebo amando, nem dizendo
A alguém “eu te amo” — sem que me conceba
Com uma outra alma que não é a minha
Toda a expansão e transfusão de vida
Me horroriza, como a avaro a idéia
De gastar e gastar inutilmente —
Inda que no gastar se [extraia] gozo.
XV
Quando se adoram, vividos,
Dois seres juvenis e naturais
Parece que harmonias se derramam
Como perfumes pela terra em flor.
Mas eu, ao conceber-me amando, sinto
Como que um gargalhar hórrido e fundo
Da existência em mim, como ridículo
E desusado no que é natural.
Nunca, senão pensando no amor,
Me sinto tão longínquo e deslocado,
Tão cheio de ódios contra o meu destino. —
De raivas contra a essência do viver.
XVI
Vendo passar amantes
Nem propriamente inveja ou ódio sinto,
Mas um rancor e uma aversão imensos
Ao universo inteiro, por cobri-los.
XVII
O amor causa-me horror; é abandono,
Intimidade…
Não sei ser inconsciente
E tenho para tudo [...]
A consciência, o pensamento aberto
Tornando-o impossível.
E eu tenho do alto orgulho a timidez
E sinto horror a abrir o ser a alguém,
A confiar n’alguém. Horror eu sinto
A que perscrute alguém, ou levemente
Ou não, quaisquer recantos do meu ser.
Abandonar-me em braços nus e belos
(Inda que deles o amor viesse)
No conceber do todo me horroriza;
Seria violar meu ser profundo,
Aproximar-me muito de outros homens.
Uma nudez qualquer — espírito ou corpo —
Horroriza-me: acostumei-me cedo
Nos despimentos do meu ser
A fixar olhos pudicos, conscientes.
Do mais. Pensar em dizer “amo-te”
E “amo-te” só — só isto, me angustia…
XVIII
[...] eu mesmo
Sinto esse frio coração em mim
Admirado de ser um coração
Tão frio está.
XIX
Seria doce amar, cingir a mim
Um corpo de mulher, mais frio e grave
e feito em tudo, transcendentalmente
O pensamento agrada-me, e confrange-me
Do terror de perto, e [junto]
Em sensação ao meu, um outro corpo.
Gelada mão misteriosa cai
Sobre a imaginação [...]
XX
É isto o amor? Só isto? [...]
Sinto ânsias, desejos,
Mas não com meu ser todo. Alguma cousa
No íntimo meu, alguma cousa ali
— Fria, pesada, muda — permanece.
[P'ra] isto deixei eu a vida antiga
Que já bem não concebo, parecendo
Vaga já.
Já não sinto a agonia muda e funda
Mas uma, menos funda e dolorosa,
[Bem] mais terrível raiva [...]
De movimentos íntimos, desejos
Que são como rancores.
Um cansaço violento e desmedido
De existir e sentir-me aqui, e um ódio
Nascido disto, vago e horroroso,
A tudo e todos…
XXI
— Amo como o amor ama.
Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.
Que queres que te diga mais que te amo,
Se o que quero dizer-te é que te amo?
Quando te falo, dói-me que respondas
Ao que te digo e não ao meu amor.
Ah! não perguntes nada; antes me fala
De tal maneira, que, se eu fora surda,
Te ouvisse todo com o coração.
Se te vejo não sei quem sou: eu amo.
Se me faltas [...]
Mas tu fazes, amor, por me faltares
Mesmo estando comigo, pois perguntas —
Quando é amar que deves. Se não amas,
Mostra-te indiferente, ou não me queiras,
Mas tu és como nunca ninguém foi,
Pois procuras o amor pra não amar,
E, se me buscas, é como se eu só fosse
Alguém pra te falar de quem tu amas.
Quando te vi amei-te já muito antes:
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci pra ti antes de haver o mundo.
Não há cousa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que o não fosse porque te previa,
Porque dormias nela tu futuro.
E eu soube-o só depois, quando te vi,
E tive para mim melhor sentido,
E o meu passado foi como uma ‘strada
Iluminada pela frente, quando
O carro com lanternas vira a curva
Do caminho e já a noite é toda humana.
Quando eu era pequena, sinto que eu
Amava-te já longe, mas de longe…
Amor, diz qualquer cousa que eu te sinta!
— Compreendo-te tanto que não sinto,
Oh coração exterior ao meu!
Fatalidade, filha do destino
E das leis que há no fundo deste mundo!
Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto
De o sentir…?
XXII
Pra que te falar? Ninguém me irmana
Os pensamentos na compreensão.
Sou só por ser supremo, e tudo em mim
É maior.
XXIII
Reza por mim! A mais não me enterneço.
Só por mim mesmo sei enternecer-me,
Soba a ilusão de amar e de sentir em que forçadamente me detive.
Reza por mim, por mim! Eis a que chega
A minha tentativa [em] querer amar.
Fonte:
Fernando Pessoa . Primeiro Fausto. http://www.cfh.ufsc.br/~magno/fausto.htm

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia XIII)

Primeiro Fausto
Terceiro Tema
A Falência do Prazer e do Amor

I
Beber a vida num trago, e nesse trago
Todas as sensações que a vida dá
Em todas as suas formas [...]
Dantes eu queria
Embeber-me nas árvores, nas flores,
Sonhar nas rochas, mares, solidões.
Hoje não, fujo dessa idéia louca:
Tudo o que me aproxima do mistério
Confrange-me de horror. Quero hoje apenas
Sensações, muitas, muitas sensações,
De tudo, de todos neste mundo — humanas,
Não outras de delírios panteístas
Mas sim perpétuos choques de prazer
Mudando sempre,
Guardando forte a personalidade
Para sintetizá-las num sentir.
Quero
Afogar em bulício, em luz, em vozes,
— Tumultuárias [cousas] usuais —
o sentimento da desolação
Que me enche e me avassala.
Folgaria
De encher num dia, [...] num trago,
A medida dos vícios, inda mesmo
Que fosse condenado eternamente —
Loucura! — ao tal inferno,
A um inferno real.
II
Alegres camponeses, raparigas alegres e ditosas,
Como me amarga n’alma essa alegria!
Nem em criança, ser predestinado,
Alegre eu era assim; no meu brincar,
Nas minhas ilusões da infância, eu punha
O mal da minha predestinação.
Acabemos com esta vida assim!
Acabemos! o modo pouco importa!
Sofrer mais já não posso. Pois verei —
Eu, Fausto — aqueles que não sentem bem
Toda a extensão da felicidade,
Gozá-la?
Ferve a revolta em mim
Contra a causa da vida que me fez
Qual sou. E morrerei e deixarei
Neste inundo isto apenas: uma vida
Só prazer e só gozo, só amor,
Só inconsciência em estéril pensamento
E desprezo [...]
Mas eu como entrarei naquela vida?
Eu não nasci para ela.
III
Melodia vaga
Para ti se eleva
E, chorando, leva
O teu coração,
Já de dor exausto,
E sonhando o afaga.
Os teus olhos, Fausto,
Não mais chorarão.
IV
Já não tenho alma. Dei-a à luz e ao ruído,
Só sinto um vácuo imenso onde alma tive…
Sou qualquer cousa de exterior apenas,
Consciente apenas de já nada ser…
Pertenço à estúrdia e à crápula da noite
Sou só delas, encontro-me disperso
Por cada grito bêbedo, por cada
Tom da luz no amplo bojo das botelhas.
Participo da névoa luminosa
Da orgia e da mentira do prazer.
E uma febre e um vácuo que há em mim
Confessa-me já morto… Palpo, em torno
Da minha alma, os fragmentos do meu ser
Com o hábito imortal de perscrutar-me.
V
Perdido
No labirinto de mim mesmo, já
Não sei qual o caminho que me leva
Dele à realidade humana e clara
Cheia de luz [...] alegremente
Mas com profunda pesadez em mim
Esta alegria, esta felicidade,
Que odeio e que me fere [...]
Sinto como um insulto esta alegria
— Toda a alegria. Quase que sinto
Que rir, é rir — não de mim, mas, talvez,
Do meu ser.
VI
Toda a alegria me gela, me faz ódio.
Toda a tristeza alheia me aborrece,
Absorto eu na minha, maior muito Que outras
[...]
Sinto em mim que a minha alma não tolera
Que seja alguém do que ela mais feliz;
O riso insulta-me, por existir;
Que eu sinto que não quero que alguém ria
Enquanto eu não puder. Se acaso tento
Sentir, querer, só quero incoerências
De indefinida aspiração imensa,
Que mesmo no seu sonho é desmedida …
VII
Tua inconsciência alegre é uma ofensa
Para mim. O seu riso esbofeteia-me!
Tua alegria cospe-me na cara!
Oh, com que ódio carnal e espiritual
Escarro sobre o que na alma humana
Fria festas e danças e cantigas…
Com que alegria minha, cairia
Um raio entre eles! Com que pronto
Criaria torturas para eles
Só por rirem a vida em minha cara
E atirarem à minha face pálida
O seu gozo em viver, a poeira — que arda
Em meus olhos — dos seus momentos ocos
De infância adulta e tudo na alegria!
Ó ódio, alegra-me tu sequer!
Faze-me ver a Morte. roendo a todos,
Põe-me ria vista os vermes trabalhando
Aqueles corpos! [...]
VIII
Triste horror d’alma, não evoco já
Com grata saudade, tristemente,
Estas recordações da juventude!
Já não sinto saudades, como há pouco
Inda as sentia. Vai-se-me embotando,
Co’a força de pensar, contínuo e árido,
Toda a verdura e flor do pensamento.
Ao recordar agora, apenas sinto,
Como um cansaço só de ter vivido,
Desconsolado e mudo sentimento
De ter deixado atrás parte de mim,
E saudade de não ter saudade,
Saudades dos tempos em que as tinha.
Se a minha infância agora evoco, vejo
— Estranho! — como uma outra criatura
Que me era amiga, numa vaga
Objetivada subjetividade.
Ora a infância me lembra, como um sonho,
Ora a uma distância sem medida
No tempo, desfazendo-me em espanto;
E a sensação que sinto, ao perceber
Que vou passando, já tem mais de horror
Que tristeza [...]
E nada evoca, a não ser o mistério
Que o tempo tem fechado em sua mão.
Mas a dor é maior!
IX
Ó vestidas razões! Dor que é vergonha
E por vergonha de si-própria cala
A si-mesma o seu nexo! Ó vil e baixa
Porca animalidade do animal,
Que se diz metafísica por medo
A saber-se só baixa …
Ó horror metafísico de ti!
Sentido pelo instinto, não na mente!
Vil metafísica do horror da carne,
Medo do amor…
Entre o teu corpo e o meu desejo dele
‘Stá o abismo de seres consciente;
Pudesse-te eu amar sem que existisses
E possuir-te sem que ali estivesses!
Ah, que hábito recluso de pensar
Tão desterra o animal que ousar não ouso
O que a [besta mais vil] do mundo vil
Obra por maquinismo.
Tanto fechei à chave, aos olhos de outros,
Quanto em mim é instinto, que não sei
Com que gestos ou modos revelar
Um só instinto meu a olhos que olhem …
Deus pessoal, deus gente, dos que crêem,
Existe, para que eu te possa odiar!
Quero alguém a quem possa a maldição
Lançar da minha vida que morri,
E não o vácuo só da noite muda
Que me não ouve.
X
O horror metafísico de Outrem!
O pavor de uma consciência alheia
Como um deus a espreitar-me!
Quem me dera
Ser a única [cousa ou] animal
Para não ter olhares sobre mim!
XI
Um corpo humano!
Às vezes eu, olhando o próprio corpo,
Estremecia de terror ao vê-lo
Assim na realidade, tão carnal.
XII
Sinto horror
À significação que olhos humanos
Contém…
Sinto preciso
Ocultar o meu íntimo aos olhares
E aos perscrutamentos que olhares mostram;
Não quero que ninguém saiba o que sinto,
Além de que o não posso a alguém dizer…
XIII
Com que gesto de alma
Dou o passo de mim até à posse
Do corpo de outros, horrorosamente
Vivo, consciente, atento a mim, tão ele
Como eu sou eu.
XIV
Não me concebo amando, nem dizendo
A alguém “eu te amo” — sem que me conceba
Com uma outra alma que não é a minha
Toda a expansão e transfusão de vida
Me horroriza, como a avaro a idéia
De gastar e gastar inutilmente —
Inda que no gastar se [extraia] gozo.
XV
Quando se adoram, vividos,
Dois seres juvenis e naturais
Parece que harmonias se derramam
Como perfumes pela terra em flor.
Mas eu, ao conceber-me amando, sinto
Como que um gargalhar hórrido e fundo
Da existência em mim, como ridículo
E desusado no que é natural.
Nunca, senão pensando no amor,
Me sinto tão longínquo e deslocado,
Tão cheio de ódios contra o meu destino. —
De raivas contra a essência do viver.
XVI
Vendo passar amantes
Nem propriamente inveja ou ódio sinto,
Mas um rancor e uma aversão imensos
Ao universo inteiro, por cobri-los.
XVII
O amor causa-me horror; é abandono,
Intimidade…
Não sei ser inconsciente
E tenho para tudo [...]
A consciência, o pensamento aberto
Tornando-o impossível.
E eu tenho do alto orgulho a timidez
E sinto horror a abrir o ser a alguém,
A confiar n’alguém. Horror eu sinto
A que perscrute alguém, ou levemente
Ou não, quaisquer recantos do meu ser.
Abandonar-me em braços nus e belos
(Inda que deles o amor viesse)
No conceber do todo me horroriza;
Seria violar meu ser profundo,
Aproximar-me muito de outros homens.
Uma nudez qualquer — espírito ou corpo —
Horroriza-me: acostumei-me cedo
Nos despimentos do meu ser
A fixar olhos pudicos, conscientes.
Do mais. Pensar em dizer “amo-te”
E “amo-te” só — só isto, me angustia…
XVIII
[...] eu mesmo
Sinto esse frio coração em mim
Admirado de ser um coração
Tão frio está.
XIX
Seria doce amar, cingir a mim
Um corpo de mulher, mais frio e grave
e feito em tudo, transcendentalmente
O pensamento agrada-me, e confrange-me
Do terror de perto, e [junto]
Em sensação ao meu, um outro corpo.
Gelada mão misteriosa cai
Sobre a imaginação [...]
XX
É isto o amor? Só isto? [...]
Sinto ânsias, desejos,
Mas não com meu ser todo. Alguma cousa
No íntimo meu, alguma cousa ali
— Fria, pesada, muda — permanece.
[P'ra] isto deixei eu a vida antiga
Que já bem não concebo, parecendo
Vaga já.
Já não sinto a agonia muda e funda
Mas uma, menos funda e dolorosa,
[Bem] mais terrível raiva [...]
De movimentos íntimos, desejos
Que são como rancores.
Um cansaço violento e desmedido
De existir e sentir-me aqui, e um ódio
Nascido disto, vago e horroroso,
A tudo e todos…
XXI
— Amo como o amor ama.
Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.
Que queres que te diga mais que te amo,
Se o que quero dizer-te é que te amo?
Quando te falo, dói-me que respondas
Ao que te digo e não ao meu amor.
Ah! não perguntes nada; antes me fala
De tal maneira, que, se eu fora surda,
Te ouvisse todo com o coração.
Se te vejo não sei quem sou: eu amo.
Se me faltas [...]
Mas tu fazes, amor, por me faltares
Mesmo estando comigo, pois perguntas —
Quando é amar que deves. Se não amas,
Mostra-te indiferente, ou não me queiras,
Mas tu és como nunca ninguém foi,
Pois procuras o amor pra não amar,
E, se me buscas, é como se eu só fosse
Alguém pra te falar de quem tu amas.
Quando te vi amei-te já muito antes:
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci pra ti antes de haver o mundo.
Não há cousa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que o não fosse porque te previa,
Porque dormias nela tu futuro.
E eu soube-o só depois, quando te vi,
E tive para mim melhor sentido,
E o meu passado foi como uma ‘strada
Iluminada pela frente, quando
O carro com lanternas vira a curva
Do caminho e já a noite é toda humana.
Quando eu era pequena, sinto que eu
Amava-te já longe, mas de longe…
Amor, diz qualquer cousa que eu te sinta!
— Compreendo-te tanto que não sinto,
Oh coração exterior ao meu!
Fatalidade, filha do destino
E das leis que há no fundo deste mundo!
Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto
De o sentir…?
XXII
Pra que te falar? Ninguém me irmana
Os pensamentos na compreensão.
Sou só por ser supremo, e tudo em mim
É maior.
XXIII
Reza por mim! A mais não me enterneço.
Só por mim mesmo sei enternecer-me,
Soba a ilusão de amar e de sentir em que forçadamente me detive.
Reza por mim, por mim! Eis a que chega
A minha tentativa [em] querer amar.
Fonte:
Fernando Pessoa . Primeiro Fausto. http://www.cfh.ufsc.br/~magno/fausto.htm

Fado Tropical

Fado Tropical

Fado Tropical

Chico Buarque

Oh, musa do meu fado,
Oh, minha mãe gentil,
Te deixo consternado
No primeiro abril,
Mas não sê tão ingrata!
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou.
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!
"Sabe, no fundo eu sou um sentimental. Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo ( além da sífilis, é claro). Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar, o meu coração fecha os olhos e sinceramente chora..."
Com avencas na caatinga,
Alecrins no canavial,
Licores na moringa:
Um vinho tropical.
E a linda mulata
Com rendas do alentejo
De quem numa bravata
Arrebata um beijo...
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!
"Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto,
De tal maneira que, depois de feito,
Desencontrado, eu mesmo me contesto.
Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito,
Me assombra a súbita impressão de incesto.
Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa,
Mas meu peito se desabotoa.
E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa,
Pois que senão o coração perdoa".
Guitarras e sanfonas,
Jasmins, coqueiros, fontes,
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre trás-os-montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo...
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:
Ainda vai tornar-se um império colonial!
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:
Ainda vai tornar-se um império colonial!