quinta-feira, 5 de julho de 2012


Fagulha




Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.
Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando
Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.
Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.
Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.
Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio
Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las
Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.

Ana Cristina Cesar

tão bonito, isso...







eu levo o seu coração comigo (eu o levo no
meu coração) eu nunca estou sem ele (a qualquer lugar 
que eu vá, meu bem, e o que que quer que seja feito
por mim somente é o que você faria, minha querida)


                    tenho medo


que a minha sina (pois você é a minha sina, minha doçura) eu não quero
nenhum mundo (pois bonita você é meu mundo, minha verdade)
e é você que é o que quer que seja o que a lua signifique
e você é qualquer coisa que um sol vai sempre cantar 


aqui está o mais profundo segredo que ninguém sabe
(aqui é a raiz da raiz e o botão do botão
e o céu do céu de uma árvore chamada vida, que cresce
mais alto do que a alma possa esperar ou a mente possa esconder)
e isso é a maravilha que está mantendo as estrelas distantes


eu levo o seu coração ( eu o levo no meu coração)

de mim...



ao redor de mim, volteia uma dor que não passa, que me arranca da face um sorriso, pondo no lugar uma ar de tristeza que parece nunca findar
nas mãos, trago os estragos em forma de pílulas, para sobreviver aos dias e a angústia de ter que respirar devagar.
engulo, devoro, não largo mão da tentativa oitava, nestes meses que se arrastam em saltos e suspiros.
mas na ponta dos dedos, vem a redenção das palavras que lanço furiosa em trechos da alma que nem se dá conta da finitude da vida que se vai.
e insisto: se machuca sentar, seguro a pena virtual e lanço meu lamento quase alegre. se dói quando de pé, deito no travesseiro amigo, no peito do companheiro e dito as letras que se aproximam misericordiosas. ainda há o que dizer, sei lá pra quem.
viver é preciso.
navegar talvez.
e eu vivo sem navegar, pois não há mares que me resistam aos inesperados gemidos e tais.
mas vivo!

feliz aniversário, Pessoa







O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...


Alberto Caeiro

para Clarice,




volta e meia encaro minha alma e pergunto se ela assim tão desabotoada não se ressente das ausências, das incertezas do tempo, das tristezas perenes e das pequenas alegrias inválidas,
pergunto, pois nunca sei o que há por dentro deste corpo meu que se dissolve em partículas incautas que se jogam pelo caos que existe nos buracos negros ou azuis.
há um quê de misericórdia nestes espelhos onde mal me percebo as rugas, os fios de cabelo branco... e há mesmo caridade divina nesta limitação que tem meu olhar neste momento tão impiedoso.
e há ainda um vazio enorme cá no peito, onde apanha um coração que desavisado insiste nas memórias de dias que se foram sem olhar pra trás, sem despedidas e sem fotografias para lembrar.
e há esta imagem de mim que desconheço, que nem sei se é real, pois tão misteriosa é tal presença em minhas andanças em labirintos espelhados que nem Jorge poderia me explicar.
e não me salvo desta condenação. nem sei se quero me salvar.
apenas adormeço esperando o dia que vem pálido enquanto as lentes de vidro não me alcançam ali, bem na hora em que o bem-te-vi me vê e canta sem me ver.

albanegromonte

num tempo que passou...




pois haverá um dia,
em que seu símbolo pousará na minha nuca
e na minha perna vai sobreviver um dragão.
 a cruz que mora no meu umbigo
será seu altar de desejo.
haverá este dia, em que estaremos com nossos corpos juntos,
já que nossas almas já cuidaram de se encontrar.
pois neste dia, nossos beijos molhados de lágrimas pelo tempo perdido vão travar os ponteiros dos relógios do aeroporto
e suas mãos buscarão meus cachos de mel, tentando achar um pensamento que não seja para você
e minha mão aquietará seu peito com o coração explodindo camiseta afora.
e aos 45 minutos do primeiro tempo,
a gente vai dizer: "oi!"
e arrastando minha mala cor-de-rosa pista do céu lá fora
vamos falar ao mesmo tempo: "você é do jeito que imaginei".
e nossas bocas se calarão para o segundo tempo dos beijos mais desejados das nossas vidas.
lamberei seus lábios, morderei de leve, serpentearei sua língua como se fosse uma gueixa tropical
e zonzos ainda, seus lábios buscarão o mais profundo da minha boca, antecipando o que virá logo mais
quando fecharmos a porta do quarto do mundo
e formos só nós.
sem palavras, dois escrevinhadores
que terão apenas mãos e lábios pra dizer qualquer coisa...
e no fim do jogo empatado
vou recostar minha cabeça no seu peito
e perguntar: "como está você?"

albanegromonte

Oração Pelo Poema



XXVI
A cem quilômetros por hora,
solto a direção do automóvel,
para escrever alguma coisa
mais urgente que minha vida.

Devo portanto utilizar
o vocabulário econômico
do Século: é proibido
amar, fumar, pisar na grama.

Mas gostaria que restasse
algum tempo para dizer
no poema as palavras súbitas
de recompensa e remissão.

Ó meu Deus, eu quero escrever
a minha vida,  não teu Céu.
Eu estou só e enlouquecido
como as ovelhas mais longínquas.

Dá pelo menos a esperança
de terminar o doloroso
poema. Dá isso a teu filho,
caído, e coberto de sal.

Alberto da Cunha MeloDo Livro do Desasossego

Por mais que pertença, por alma, à linhagem dos românticos, não encontro repouso senão na leitura dos clássicos. A sua mesma estreiteza, através da qual a clareza se exprime, me conforta não sei de quê. Colho neles uma impressão alacre de vida larga, que contempla amplos espaços sem os percorrer. Os mesmos deuses pagãos repousam do mistério.
A análise sobrecuriosa das sensações - por vezes das sensações que supomos ter -, a identificação do coração com a paisagem, a revelação anatómica dos nervos todos, o uso do desejo como vontade e da aspiração como pensamento - todas estas coisas me são demasiado familiares para que em outrem me tragam novidade, ou me dêem sossego. Sempre que as sinto, desejaria, exactamente porque as sinto, estar sentindo outra coisa. E, quando leio um clássico, essa outra coisa é-me dada.
Confesso-o sem rebuço nem vergonha… Não há trecho de Chateaubriand ou canto de Lamartine - trechos que tantas vezes parecem ser a voz do que eu penso, cantos que tanta vez parecem ser-me ditos para conhecer – que me enleve e me erga como um trecho de prosa de Vieira ou uma ou outra ode daqueles nossos poucos clássicos que seguiram deveras a Horácio.
Leio e estou liberto. Adquiro objectividade. Deixei de ser eu e disperso. E o que leio, em vez de ser um trajo meu que mal vejo e por vezes me pesa, é a grande clareza do mundo externo, toda ela notável, o sol que vê todos, a lua que malha de sombras o chão quieto, os espaços largos que acabam em mar, a solidez negra das árvores que acenam verdes em cima, a paz sólida dos tanques das quintas, os caminhos tapados pelas vinhas, nos declives breves das encostas.
Leio como quem abdica. E, como a coroa e o manto régios nunca são tão grandes como quando o Rei que parte os deixa no chão, deponho sobre os mosaicos das antecâmaras todos os meus triunfais do tédio e do sonho, e subo a escadaria com a única nobreza de ver.
Leio como quem passa. E é nos clássicos, nos calmos, nos que, se sofrem, o não dizem, que me sinto sagrado transeunte, ungido peregrino contemplador sem razão do mundo sem propósito, Príncipe do Grande Exílio, que deu, partindo-se, ao último mendigo, a esmola extrema da sua desolação.

az De Conta...


Faz de conta que ela era uma princesa azul pelo crepúsculo que viria, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que sangue escarlate não estava em silêncio branco escorrendo e que ela não estivesse pálida de morte, estava pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz-de-conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz-de-conta verde cintilante de olhos que vêem, faz de conta que ela amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, faz de conta que vivia e que não estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que era sábia bastante para desfazer os nós de marinheiros que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua, faz de conta que ela fechasse os olhos e os seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos da gratidão mais límpida, faz de conta que tudo o que tinha não era de faz-de-conta, faz de conta que se descontraíra o peito e a luz dourada a guiava pela floresta de açudes e tranqüilidade, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando.


Clarice Lispector

Para Poder Morrer


Para poder morrer
Guardo insultos e agulhas
Entre as sedas do luto.
Para poder morrer
Desarmo as armadilhas
Me estendo entre as paredes
Derruídas
Para poder morrer
Visto as cambraias
E apascento os olhos
Para novas vidas
Para poder morrer apetecida
Me cubro de promessas
Da memória.
Porque assim é preciso
Para que tu vivas.

Hilda Hilst

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